O Escândalo do Sermão Desaparecido

Mário Coutinho
4 min readAug 10, 2024

--

Rodando pelo Instagram, vi um vídeo do Lima Duarte recitando um trechinho de um sermão do Padre Antônio Vieira no Roda Viva, em 2006. A eloquência do ator me prendeu; devo ter assistido ao vídeo por pelo menos meia hora e decorei o trechinho, que é assim:

“A mim, a imagem dos meus pecados me comove muito mais que essa imagem do Cristo crucificado. Diante dessa imagem do Cristo crucificado, eu sou levado a ensoberbecer-me por ver o preço pelo qual Deus me comprou. Diante da imagem dos meus pecados é que eu me apequeno por ver o preço pelo qual eu me vendi. Por ver que Deus me compra com todo o seu sangue, eu sou levado a pensar que eu sou muito, que eu valho muito. Mas quando noto que eu me vendo pelos nadas do mundo, aí eu vejo que eu sou nada. Eu valho nada.”

Mas — vocês me conhecem — não me dei por satisfeito. Transcrevi a passagem no Google e só achei referências à entrevista; mesmo o título do sermão, que Lima dizia ser o “Quarto Domingo de Ascensão”, não me levava a qualquer um de seus sermões. Lembrei-me, então, que tinha uma edição da Penguin-Companhia das Letras, organizada por Alfredo Bosi. Infelizmente, o mestre me falhou: o sermão do Quarto Domingo de Ascensão não estava no volume. Passou pela minha cabeça que poderia ser uma paráfrase do trecho, e por isso não encontrei nenhuma referência online.

Ainda insatisfeito, busquei uma edição completa dos sermões. Encontrei, em um sebo perto de casa, na rua da Mooca, o monumento em 15 volumes pela Livraria Chardron (hoje conhecida apenas como Lello) publicada entre 1907 e 1908 e comecei a buscar o bendito sermão. A coisa mais próxima no índice era o Sermão da Quarta Dominga do Advento; o vídeo parecia indicar que a passagem estava logo no comecinho. Nada.

Entrei em pânico e fui assistir à entrevista completa para ver se encontrava mais alguma pista. Lima contava mil histórias da era do rádio e do início da TV com Assis Chateaubriand, cada uma mais rocambolesca que a outra, e nada do sermão. O pânico se misturou com desconfiança, convenci-me de que o tal sermão não existia; talvez fosse uma passagem de alguma adaptação teatral sobre Vieira, talvez fosse completamente inventado.

Talvez tudo aquilo fosse inventado. Comecei a pensar que o Lima Duarte era um mentiroso de marca maior. Sim, todas aquelas histórias eram mentira. É claro que o Assis Chateaubriand não colocou um chapéu de vaqueiro na rainha Elizabeth sob o pretexto de conferir-lhe um título da “ordem do jagunço”. Eu tinha sido feito de idiota, aquele velho safado, que devia estar metido com a P2 e outros mil complôs, ria da minha cara, ria da cara do povo brasileiro, que permitiu que ele entrasse em suas casas todos os dias em horário nobre.

Enquanto pensava em como desmascarar o Lima Duarte, meu amigo Eduardo Aubert me mandou uma mensagem às duas e meia da manhã dizendo que o seu marido também ficou fascinado com a recitação e foi à caça do sermão. Equipados com mais edições do Vieira e menos paranoia que eu, encontraram o trechinho no mesmo Sermão da Quarta Dominga do Advento que me desesperou. Transcrevo abaixo:

“Muito melhor me conheço eu diante da imagem d’um pecado que diante da imagem de um Cristo crucificado. Quando estou diante da imagem de Cristo crucificado, parece que tenho razões de me ensoberbecer, porque vejo o preço porque Deus me comprou; mas quando me ponho diante da imagem d’um pecado, não tenho razões senão de me humilhar, porque vejo o preço porque eu me vendi. Quando vejo que Deus me compra com todo o seu sangue, não posso deixar de cuidar que sou muito; mas quando vejo que eu me vendo pelos nadas do mundo, não posso deixar de crer que sou nada.”

Diante da imagem do meu próprio pecado, me apequenei. Acusei o gigante, primeiro-cavalheiro do teatro brasileiro, de ser um loroteiro, quando tudo que ele fez foi oferecer-nos uma paráfrase que mantém a solenidade e o estilo do original — eliminando os arcaísmos do “porque” e do “cuidar” –, uma paráfrase que cabe na boca e é mais contundente ainda que as linhas do imperador da língua portuguesa. Senti-me humilhado e peço perdão por ter apenas pensado isso. Mas quanto mais tenho delinquido, mais empenhado pelo perdão me torno.

(Isso aqui é só uma desculpa para juntar o trecho original com a paráfrase e disponibilizar na internet para outras almas obsessivas que queiram o original.)

--

--

Mário Coutinho

Bacharel em Letras e Mestrando em Arqueologia pela Universidade de São Paulo, Vim aqui dar opiniões que ninguém pediu, mas também atendo a pedidos. @mariuscout