Como Heródoto e Tucídides escrevem suas Histórias

Mário Coutinho
6 min readMay 31, 2021

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Considerado o pai da História, Heródoto é o fundador de um gênero literário novo ao mundo grego; para a gênese desse novo gênero ele deve se apoiar em gêneros já estabelecidos - como bem diz Todorov “um novo gênero é sempre a transformação de gêneros antigos”*- como a epopéia e o discurso filosófico em prosa.

Comparativamente, em seu proêmio, Heródoto tanto se distancia quanto se filia a Epopeia; entre os elementos que o distanciam da tradição Épica podemos citar a assinatura do trabalho. Entre os elementos com que podemos ligá-lo a Epopeia estão a própria existência de um Proêmio com as intenções e motivações do texto — entender a razão da contenda entre Helenos e não Helenos (ou Bárbaros) — e seus métodos, ou seja, a exposição das tradições orais e textuais — os λόγοι — de helenos e não helenos e a reflexão do autor sobre essas tradições que conduzem àquilo que ele de fato pode afirmar saber — οἶδᾰ — ; e finalmente a preservação da fama e glória — κλέᾰ — dos feitos dos homens (I.1).

Um exemplo interessante desse modelo é a própria explicação da contenda por meio dos raptos de mulheres míticas, que Heródoto reproduz a tradição Persa de que os Fenícios foram os primeiros a raptar uma princesa grega — Io — e a sucessão de raptos até afirmar que irá começar pelo que sabe de fato, em um passado não muito remoto:

“Isto é o que contam os Persas e os Fenícios. Quanto a mim, a respeito de tais acontecimentos, não vou afirmar que as coisas se passaram assim ou de outra maneira, mas, depois de assinalar aquele que eu próprio sei ter sido o primeiro a cometer atos injustos contra os Helenos, avançarei na narrativa, examinando indistintamente as pequenas e as grandes cidades dos homens.” (5.3).

O parágrafo seguinte é significativo pois nos revela um aspecto importante das estratégias narrativas de Heródoto, a dita “Roda da Fortuna”. Ao dizer que “Persuadido de que a felicidade humana nunca permanece firme nos mesmo ponto mencionarei por igual umas e outras (5.4)” Heródoto descreve um mecanismo usado por ele na construção de suas histórias, isto é, a descrição das poleis e de seus governantes em movimentos de ascensão e queda, estudando suas causas com um olhar culturalmente — do ponto de vista ético-religioso — Heleno, o que nos leva a mais duas estratégias narrativas usadas por Heródoto: as digressões e o narrador intruso.

Em relação às digressões é importante salientar que Heródoto muitas vezes prefere dar voltas a seguir uma cronologia rigorosa, para explicar, por exemplo, o destino de Creso (6.1) ele faz uma digressão contanto a história de Creso “Impõe-se, neste ponto da minha narrativa, uma reflexão sobre quem era Ciro, o destruidor do império de Creso, e por que forma os Persas assumiram a supremacia sobre a Ásia. (95.1)”. Para Heródoto é mais importante contar uma boa história (o que faz sentido se levarmos em consideração a hipótese de que suas Histórias foram compostas tanto para a leitura quanto para sua declamação em público) do que a rigidez cronológica.

E finalmente o último aspecto de interesse em suas estratégias narrativas é a utilização de um narrador intruso, isto é, um narrador que impõe seus valores ético morais em contraposição com os eventos narrados. Este recurso é presente já em Homero, podemos citar a famosa passagem em que Glauco e Diomedes trocam armaduras e o narrador Homérico aponta que a troca foi injusta, equivalente a trocar “nove bois por cem” (Il. VI.237), Heródoto utiliza a mesma técnica no início do logos de Ciro supracitado. (95.1)

Diferentemente de Heródoto que teve que criar um novo gênero literário se apoiando e adaptando elementos dos gêneros que o precederam, Tucídides pode então ser considerado um auctor** do gênero, isto é, aquela que expande os limites do gênero com sua força criativa e crítica.

Para entender os elementos que constituem as estratégias narrativas de Tucídides na composição de sua História da Guerra do Peloponeso devemos antes delinear seu Programa e sua Metodologia: O Programa de Tucídides nos é apresentado em I, 1, 1 e basicamente consiste de uma justificativa da narração, a proporção da guerra entre helenos e que seria mais digna de menção que todos os conflitos anteriores — uma espécie de “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta” ainda nos tempos da antiga musa, e a verdadeira causa da Guerra, que é o temor inspirado nos espartanos pelo crescimento do império naval ateniense; para isso Tucídides narra a história da Grécia até o período das Guerras Médicas. Já a chamada Metodologia é abordada entre a chamada Arqueologia — que serve “de prova da grandeza da guerras, seu fim imediato, mas, ao mesmo tempo, dá a conhecer os processos de crítica a que o historiador submeteu os dados que tinha à mão para aceitá-los, rejeitá-los ou ainda para dar-lhes nova interpretação.” — e o panorama geral da guerra. Na Metodologia, I, 20, o historiador se posiciona criticamente às tradições pregressas ao dizer:

“Pois bem, tais foram de acordo com minhas pesquisas os tempos antigos; sobre eles é difícil dar crédito a todo e qualquer indício. De fato, os homens, mesmo quando às tradições sobre o passado dizem respeito à sua própria terra, agem do mesmo modo: aceitam-nas sem submeter à prova sua autenticidade.” (Tucídides, I, 20)

Esta postura ao mesmo tempo que o distancia do poetas e logógrafos o aproxima da tradição sofística do atento exame às causas, assim como, embora ele se contraponha em diversas passagens, Heródoto também o faz. Ainda na Metodologia, mais precisamente em XXI, Tucídides se contrapõe diretamente aos poetas e logógrafos supramencionados ao dizer que os poetas utilizam às tradições orais para engrandecer seus hinos e os logógrafos para agradar os ouvintes, ganhando um estatuto mítico “que não merece fé”, ao passo que ele os toma de forma crítica e assume um compromisso com os fatos que são suficientemente estabelecidos e possam ser seguramente tidos como verdadeiros. Diferencia-se também de Heródoto em suas intenções, enquanto Heródoto compõe suas histórias para preservar a memória da glória e feitos dos Helenos e não Helenos, Tucídides constrói uma narrativa que poderá ser “um bem para sempre” — I, 22 -, isto é, ajudar às próximas gerações, uma vez que problemas semelhantes possam aflorar no futuro. Um exemplo dessa intenção pode ser encontrado na descrição da peste de Atenas — II, 49 — e seus sintomas para que as gerações posteriores possam reconhecer a doença e, se não tratá-la, ao menos fugir dela.

Agora que tratamos dessas questões, podemos partir para as estratégias narrativas empregadas por Tucídides na composição de sua História. Elas estão submetidas ao próprio método tucidideano, sendo a primeira a ἀκρίβεια — precisão, exatidão — inerente ao seu estilo conciso, objetivo — não visa entreter, e sim edificar o leitor — e método de seleção das tradições, justamente o que o separa de Heródoto, que diz ser seu dever “relatar o que me disseram, e não acreditar em tudo, e o que acabo de declarar aqui vale para o resto de minha obra” (Histórias, VII, 152, 3)***. Essa exatidão leva o leitor a crer em um narrador imparcial, ou como propõe Paul Veyne:

“Heródoto se diverte relatando as diferentes tradições contraditórias que recolheu; Tucídides quase nunca faz isso: ele relata apenas aquela considerada a verdadeira; ele assume a responsabilidade.” (Veyne, p. 27)

Esse ethos é mais uma das estratégias de Tucídides, ao construir a imagem de um narrador imparcial e estabelecer seus critérios e deixando de lado às justificativas, ele na realidade utiliza-se de um artifício retórico, fazendo dos elementos acessórios — a Metodologia, algumas passagens da Arqueologia em que descreve seus objetivos — um preâmbulo para seu discurso, e escondendo sua parcialidade no conflito como um στρατηγός — general — ateniense, e mesmo sua identidade de “Tucídides de Atenas” ao invés do patronímico usado no período do conflito. Em suma, podemos dizer que a construção e exposição do discurso Tucididiano é em si mesma a principal estratégia narrativa que o historiador constrói visando parecer confiável e imparcial aos olhos — ou ouvidos — de seu público.

  • *Todorov, Tzetan. El orígen de los géneros. In: Gallardo MAG. Teoria de los géneros literarios. Arco Libros, Madrid, 1988.
  • **“auctor ab augendo dictus” — Isidoro de Sevilha, Etimologias: X, 2.
  • ***É justamente esse elemento que separa tanto os dois autores, Tucídides categoriza Heródoto, ainda que não o mencione nominalmente, como mais um coletor de narrativas (logógrafo) entre muitos, e sua inovação está posta na seleção e reflexão acerca das fontes, algo que Heródoto também faz com o seu narrador intruso.
  • Bibliografia consultada
  • Herodotus. The Histories. Trad. Robin Waterfield. Oxford: Oxford University Press, 2008.
  • Todorov, Tzetan. El orígen de los géneros. In: Gallardo MAG. Teoria de los géneros literarios. Arco Libros, Madrid, 1988.
  • Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Anna Lia Amara de Almeida Prado. — 3 Ed. — São Paulo: WMF, 2013.
  • VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos. Trad. Mariana Echalar.– 1 Ed. –São Paulo: Editora Unesp, 2014.

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Mário Coutinho

Bacharel em Letras e Mestrando em Arqueologia pela Universidade de São Paulo, Vim aqui dar opiniões que ninguém pediu, mas também atendo a pedidos. @mariuscout